SOBRE A LITERATURA HINDU – UM PANORAMA GERAL
SHRUTI: ‘aquilo que foi ouvido’ e transmitido oralmente. Escrituras baseadas na revelação.
SMIRITI: ‘o que deve ser relembrado’ – escritos baseados na tradição ou memória.
SHASTRA: 1. Tratado; 2. Escritura sagrada; 3. Regra, ordenança, ensinamento, preceito. Livros sagrados que contém a Tradição e Sabedoria da Índia.
SAMHITA: coleção ou código de regras, leis.
STOTRA: elogio, louvação; referem-se ainda a certa classe de recitativos ou orações hindus que louvam aspectos dos deuses, como Devi, Shiva, ou Vishnu, por exemplo.
SANᾹTANA DHᾹRMA (Sabedoria Eterna, Sabedoria Perene, Filosofia Perene)
SHRUTI : “OUVIDO” ; “REVELADO”
Estão na base do conhecimento, são o cânone dos textos sagrados hindus, “ouvidos” pelos rishis (sábios videntes).
Nessa categoria estão: VEDAS, BRAHMANAS, ARANIAKAS e UPANISHADS.
VEDAS
Denominam-se Vedas os quatro textos, escritos em sânscrito por volta de 1500 a.C., que formam a base do extenso sistema de escrituras sagradas do hinduísmo, que representam a mais antiga literatura de qualquer língua indo-européia.
A palavra Veda, em sânscrito, da raiz विद् vid- (reconstruída como sendo derivada do Proto-Indo-Europeu weid-) que significa conhecer, escreve-se वेद veda no alfabeto devanágari e significa "conhecimento". É a forma guna da raiz vid- acrescida do sufixo nominal -a.
São estes os quadro Vedas:
§ ऋग्वेदः ṛgveda - Rigveda: (sânscrito:composto tatpurusha de ṛc- (hino) e veda-) significa "veda dos hinos". É o primeiro, na ordem comum de enumeração dos quatro Vedas;
§ यजुर्वेदः yajurveda - Yajurveda: (sânscrito: composto de yajus- (sacrifício) e veda-) significa "veda do sacrifício". Contém textos religiosos com foco na liturgia, nos rituais e no sacrifício, e como executá-los.
§ सामवेदः sāmaveda - Samaveda: (sânscrito: composto de sāman- (canto ritual) e veda-) significa "veda dos cantos rituais". É o terceiro, na ordem comum de enumeração dos quatro Vedas;
§ अथर्ववेदः atharvaveda - Atarvaveda: (sânscrito: composto de atharvān (um tipo de sacerdote) e veda-). É o quarto veda.
Muitos historiadores consideram os Vedas os textos sobreviventes mais antigos. Estima-se que as partes mais novas dos vedas datam, aproximadamente de 500 a.C.; o texto mais antigo (Rigveda) encontrado é, atualmente, datado a aproximadamente 1500 a.C., mas a maioria dos indólogos concordam com a possibilidade de que uma longa tradição oral existiu antes que os Vedas fossem escritos.
Representam o mais antigo estrato de literatura indiana e, de acordo com estudantes modernos, são escritos em uma forma de linguagem que evoluiu do sânscrito.
- A mais antiga e importante das coleções védicas foi o Rigveda (Veda das estrofes, ou dos hinos), composto por volta de 1400/1500 a.C., e formado por 1.028 hinos, dedicados a várias divindades da religião védica.
- As fórmulas sacrificiais e os ritos mágicos, em versos e prosa rimada, do Yajurveda (Veda das fórmulas), escrito em torno de 1200 a.C., também possuíam caráter marcadamente cerimonial.
- Cerca de um século depois, surgiu o Samaveda (Veda dos cânticos), conjunto de hinos para serem cantados durante o ritual de sacrifício e muito ligados ao Rigveda.
- Por último, o Atharvaveda (o nome refere-se a uma categoria especial de sacerdotes), composto por volta de 1200 a.C..
BRAHMANAS, ARANIAKAS , (SUTRAS ) e UPANISHADS
Entre os anos 1000 e 700 a.C. a literatura se manteve poética, mas passou a ter finalidades litúrgicas, em tratados e comentários em prosa relativos aos Vedas.
Entre eles, destacam-se quatro tipos de obras:
(1) os Brahmanas, comentários sobre o ritual e a tradição, escritos em geral numa prosa seca e didática, embora incluam alguns relatos lendários;
(2) os Aranyakas (Livro para meditar no bosque), tratados esotéricos compostos entre 800 e 600 a.C.;
(3) os Sutra, conjunto de aforismos destinados à divulgação dos princípios do bramanismo, que versam sobre ritos, astronomia, linguagem e gramática;
(4) e os Upanishads (coleções de diálogos esotéricos), elaborados entre 1000 e 500 a.C., e que expunham as crenças centrais do hinduísmo, como a identificação do atman, ou alma individual, com a realidade universal única, ou Brahman, e a doutrina do karma e dharma, evolução do homem desde o seu nascimento até a união final com a divindade, ao longo de uma série de reencarnações purificadoras.
Além da elaboração de um corpo completo de filosofia e cosmologia místicas, de inspiração bramânica, de grande repercussão em toda a literatura posterior, essas obras tiveram notável importância no desenvolvimento e aperfeiçoamento do sânscrito, com a proliferação de uma extensa produção técnica e didática, na qual se incluem várias gramáticas.
LITERATURA “PÓS VEDAS” - CLÁSSICA
A literatura posterior aos Vedas, entre 400 a.C. e o ano 1000 da era cristã, passou por profunda renovação. O melhor exemplo disso foi a aparição dos dois grandes poemas épicos da Índia, o Mahabharata (500/400 a.C.) (Relato da grande guerra dos Bharatas – cf. 1450 a.C./ história) e o Ramayana (Gesta de Rama).
O Mahabharata, atribuído pela tradição ao sábio Vyasa. Escrito em estilo simples e direto, relata em mais de 200.000 versos as lutas pelo poder entre os Kauravas e seus primos, os Pandavas, tema central em torno do qual se tecem numerosos contos de significado metafórico e profunda sabedoria, além de relatos secundários, recolhidos por poetas posteriores. O episódio mais célebre é o Bhagavad-Gita (Canção do Senhor), que constitui uma síntese poética do pensamento hindu anterior ao budismo.
Descrição sobre conhecimento encontrada no Bhagavad Gita, (13.8-12): "aceitar a importância da auto-realização e buscar a Verdade Absoluta." O objetivo dos Vedas, portanto, é proporcionar respostas plausíveis para o candidato em busca filosófica acerca da Verdade Absoluta.
Posteriormente, numa estrutura de textos que remetem à tradição original, estão os SMIRITI e ainda os ITIHᾹSA (Mahabharata e Ramayana) e PURᾹNAS.[i] A proposta destas escrituras é remover a ignorância e fazer o homem uno (Yoga) com o Inominado – o Absoluto (Brahman). Todas elas mostram três caminhos na busca do EU:
1). KARMA KANDA – (RITUAIS, AÇÃO RITUAL);
2). UPASANA KANDA (CAMINHO ATRAVÉS DA ADORAÇÃO);
3). JÑANA KANDA (CAMINHO ATRAVÉS DO CONHECIMENTO) – estudando as Aranyakas e Upanishads.
OS SEIS DARSHANAS – ‘PONTOS DE VISTA’ VÁLIDOS SOBRE O CONHECIMENTO DOS VEDAS - ‘ESCOLAS FILOSÓFICAS’
Os seis Darshanas são :PURVA MIMᾹNSᾹ, NYᾹYA, VAISESHIKA, SAMKHYA, YOGA e VEDANTA
1. VAISESHIKA (VIII a.C) – ‘escola atômica’, materialista;
2. SAMKHYA (VII a.C) – ‘sistema de metafísica analítica’ – enumeração. Categorização da realidade formada por 25 tattvas, elementos, que se organizam e modificam num contexto de Natureza (PRAKRITI) e Consciência/Espírito (PURUSHA);
3. NYᾹYA (VII a.C) – ‘análise lógica’;
4. PURVA MIMᾹNSᾹ (VI a.C) – fundada por Jaimini, seu objeto, o mesmo da escola Uttaramimᾱnsᾱ :” ensinar a arte de raciocinar, com o propósito expresso de facilitar a interpretação dos Vedas, não só na parte especulativa,senão também na prática.” Por isso, também é conhecido como Karma-Mimᾱnsᾱ.
5. YOGA (VI a.C) – 1. União, fazer união; 2. União da alma individual com o Ser Supremo – ou qualquer coisa eticamente correta que contribui para a união com o Supremo; 3. Método/doutrina pelo qual essa união é realizada. Darshana representado no texto Yoga Sutra, de Patanjali, que proporciona meios para se atingir a mais alta consciência e a libertação, por meio do controle das flutuações da mente. O Yoga de Patanjali preconiza um ‘sistema de esforços’ que objetiva a liberação do SER (Purusha/Espírito) dos condicionamentos, o domínio da mente, a auto-realização do indivíduo e a união com o Divino (união de jivatma (alma individual) e Paramatma (Espírito Supremo));
6. VEDANTA ou UTTARA MIMᾹNSᾹ - Vedanta, como um dos seis darshanas, visões, traz interpretações variadas: dualista (Dvaita), pluralista (Vishishtadvaita) e monista (Advaita).
1. Dvaita – adoração de um Deus pessoal ou adoração a qualquer ideal divino;
2. Vishishtadvaita – monismo qualificado – ensina e imanência e transcendência de Deus;
3. Advaita – não dual, monista – ensina a unidade espiritual “ Eu e Tu somos UM”.
Estas três visões não são contraditórias entre si, constituem etapas sucessivas na realização espiritual, como destacou Ramakrishna.
MAIS INFORMAÇÃO
Textos épicos:
A Grande Epopéia desenvolveu-se pouco a pouco, a partir do século II antes da nossa era (e ainda antes em alguns episódios), nos meios de bardos e genealogistas adstritos a diversos principados do Norte da Índia. Essas longas descrições, aumentadas e modificadas gradualmente, conduziram à redação de duas vastas epopéias: o Mahâ-Bhârata ou «A Grande Guerra dos Bharatas» e o Râmâyana ou «A gesta de Râma». A sua conclusão pode ter exigido quatro ou cinco séculos. Tanto umas como outras, essas obras concentram-se em personagens reais, privilegiadas no plano divino. A primeira narra as aventuras da família dos Pândavas, cinco irmãos, alvo do ódio dos seus primos contra os quais reivindicam o reino: a luta surda culmina com uma batalha impressionante na qual perece a maior parte dos chefes; os cinco irmãos e a sua esposa comum, Draupadî, sobrevivem, mas para desaparecerem pouco depois, ceifados por uma morte sobrenatural. A segunda epopéia, mais curta, mais condensada, descreve a vida do herói Râma, que desposou a princesa Sîtâ e, tendo-a perdido, raptada por um demônio, parte à sua procura e reconquista-a no final de uma longa guerra. No entanto, em conformidade com a tendência para a tragédia das epopéias, Sîtâ acaba por seguir o caminho da floresta e sucumbir a morte sobrenatural. Os dois textos são, sob diversos aspectos, de caráter religioso: não só pelas cenas maravilhosas que abundam, clima mítico e divinização dos heróis - Krishna por um lado e Râma por outro (isto pode relacionar-se a uma redação posterior)- mas, sobretudo, pelo discurso (quase permanente) que desenvolvem sobre a ética e o ideal hinduístas, sobre os deveres das castas, as prerrogativas do brâmane, etc.
Na primeira epopéia está um episódio que se reveste da dignidade de uma espécie de Evangelho, a Bhagavad-Gîtâ (400/300 a.C.) ou «Canto do Bem-Aventurado»: são as palavras que, antes da grande batalha, o herói/avatar Khrishna, cocheiro do carro de Arjuna (um dos cinco irmãos Pandavas), dirige ao seu companheiro para o incitar a agir. Nesse diálogo estão presentes elementos fundamentais do pensamento védico relativos ao EU, ao imperecível ATMA, ao criador (ISHVARA) e ao Absoluto (BRAHMAN). Por seu caráter profundo e reflexivo é, inclusive, tratado ‘popularmente’ como um ‘quinto veda’. Numa visão sintetizadora, integra visões diversificadas como Vedanta, Yoga, Samkhya, Bramanismo ortodoxo, bem como a adoração pessoal de Krishna . Pretende ser um ensinamento moral (Dharma) e místico (Yoga Shastra) ao mesmo tempo e traz um caminho triplo a serviço da libertação: karma yoga (ação desinteressada), jñana yoga (conhecimento) e bhakti yoga (devoção). As duas primeiras abordagens expostas, principalmente nos capítulos de 1 a 12, enquanto os 6 últimos capítulos tratam do ideal e mérito da devoção (Bhakti). Composto em 18 capítulos, num total de 700 versos.
Os Purânas e Tantras
Os Purânas ou «Antiguidades» são mais vizinhos, ao que parece, daquilo a que chamaríamos tratados religiosos, porque contém de forma prolixa ensinamentos sobre a prática e o ritual, dados sobre as festividades e peregrinações e elementos de mitologia: assiste-se às lutas da grande Deusa contra os demônios, às aventuras guerreiras, galantes ou ascéticas de Shiva, à biografia de Krishna. Mas o seu objetivo próprio é muito diferente. São textos com pretensões históricas, que querem descrever a história das dinastias ou pelo menos das genealogias reais e apoiar as bases dessa história por uma cosmogonia e uma teogonia, que mergulham no mais profundo das eras míticas.
A pouco e pouco, esses textos, carregados de interpolações, encheram-se de materiais de todas as procedências. Alguns parecem ter sido concebidos para as necessidades de seitas particulares, mas há os chamados Puranas Superiores, em número de dezoito, classificados pela tradição como Puranas Vishnuítas, Shivaítas e Bramaítas (dedicados a Vishnu, Shiva e Brahma). O mais célebre desses textos, mas não o mais antigo, é o Bhâgavata-Purâna, que descreve a vida do herói-deus Krishna.
A literatura dos Purânas pode estender-se, no seu conjunto, dos primeiros séculos da nossa era até ao século XII e porventura mais além. Em torno dos Purânas Secundários ou menores gravitam hinos, litanias, «glorificações» de lugares santos, etc. Podem anexar-se a este tipo literário o Yoga-vásishtha, por exemplo, numa vasta coletânea mista entre o gênero purânico e a Smriti.
Tratados análogos aos Purânas, mais ligados a seitas ou grupos de seitas, são os chamados Tantras «Livros». Mais freqüentemente, distinguem-se entre esses Livros os tratados vishnuítas ditos Samhitâs ou «Coletâneas», os Shivaítas ou Âgamas «Tradições» e, finalmente, os Tantras propriamente, que se referem a um aspecto da religião denominado, segundo eles, tantrismo que não é destituído de afinidades com as seitas Shaktas (adoração de Shakti – a Deusa).
Foram escritos Tantras quase até aos nossos dias. Com efeito, esses Tantras (no sentido amplo do termo) são as verdadeiras bases literárias do hinduísmo como se pratica na atualidade. Encontram-se neles descrições rituais minuciosas (rituais de simbolismo e de adoração), elementos de doutrina e de ética e, finalmente, métodos próprios para aperfeiçoar a individualidade psíquica (Yoga).
Outros textos sânscritos:
a) Em primeiro lugar, há o conjunto de textos sânscritos que representam aquilo a que se pode chamar belas-letras: contos e romances, poesia lírica e didáticas, teatro. Se os contos (diferentes dos das tradições búdicas e jainas) só remotamente são obras religiosas, podem considerar-se, em contrapartida, numerosos os dramas e ainda mais os poemas de inspiração devota. Das obras de alta lírica, aquilo a que se chama «grandes poemas» ou epopéias líricas, têm uma efabulação de origem semi-religiosa, porquanto inspiram o seu tema na Epopéia e nas Purânas e, exaltando o dharma hindu, abordam fatos de culto ou de adoração, recordações de mitos e de lendas piedosas. Deste ponto de vista, pode-se considerar Kâlidâsa, o grande poeta lírico e dramático do século V (aliás, data motivo de controvérsia), um autor religioso, pois a ordem social, a ética e a função real são os aspectos de uma mesma realidade ou, se se quiser, de uma mesma norma, que também engloba a religião.
b) Obras singulares que merecem ser notadas à parte, senão pela sua feitura que é a da lírica usual, mas pelo seu conteúdo, são os poemas ambíguos, que se interpretam simultaneamente como divertimentos eróticos e como a expressão da devoção mais ardente: trata-se do resultado de algumas tendências pietistas que prevaleceram a partir de uma certa época. A mais conhecida dessas obras é o Gîtagovinda ou «Canto do Pastor» (séc. XII), uma espécie de pastoral requintada que descreve os amores do deus Krishna e da jovem Râdhà em termos de um realismo intenso, no estilo do Cântico dos Cânticos.
c) Segue-se a literatura filosófica. Não existe, de modo algum, entre filosofia e religião a demarcação que estamos habituados a estabelecer. Aquilo a que se chama (impropriamente) sistemas filosóficos, e não passa de «concepções» (darshana), ou seja, de pontos de vista diferentes de uma mesma realidade supra-sensível, tomaram todos em diferentes graus, por objetivo, o acesso à Libertação. No contexto do pensamento hindu, ao que parece, a especulação abstrata se constitui num sentido a ser experimentado, vivenciado; diferente
daquilo que entendemos – modernamente – como reflexão filosófica, aproxima-se, talvez, daquilo que praticavam os gregos, numa expressão da inteligência, da razão humana, frente à realidade que se apresenta – do amor à sabedoria - numa dialética do discurso que busca refletir e elucidar a verdade das coisas.
[i] PURANAS – textos posteriores aos Vedas e Upanishads. Lendas e narrativas históricas dos tempos antigos, tratam sobre a criação e destruição do universo, aspectos metafísicos da existência, a genealogia dos deuses e seus feitos; ao que parece, foram compostos para o uso da parte menos instruída do país, que não sabia ler os Vedas.